IS IT WICKED NOT TO CARE?

Não me lembro quando ouvi pela primeira vez a música “Is it wicked not to care?”1 da banda Belle and Sebastian, mas lembro bem do impacto que causou em mim, não somente a música, mas também o videoclipe da canção. Para uma ribeirinha como eu foi tão fácil a identificação com as imagens dos integrantes da banda se divertindo na beira de um rio na Escócia. Essa é, sem dúvida, uma das minhas músicas preferidas do Belle and Sebastian.

A letra da música começa dizendo assim: “É perverso não se importar quando dizem que você está enganado? Pensando em esperanças e muitos sonhos que não existem?” E continua: “É perverso não se importar quando você desperdiçou muitas horas conversando sem parar com alguém que está lá? Eu sei que a verdade me espera, mas ainda hesito por causa do medo.” 

Essas palavras giraram muito na minha cabecinha quando era mais jovem, lembro de estar estudando direito penal no estágio no Ministério Público da Bahia e de alguma maneira esses questionamentos se tornaram questionamentos jurídicos sobre dolo, culpa, ação, omissão, prevenção geral, retribuição. Só posso dizer que todos esses anos aprofundei minhas interrogações e sigo escrevendo sobre esses assuntos.

Fique comigo mais um pouco, não feche a janela por onde nos vemos, agora vamos pensar se em um ambiente inteligente interativo é perverso não se importar quando dizem que há um risco na utilização da tecnologia.

Na sociedade do risco, Claus Roxin e Günther Jacobs optaram por classificar os riscos em proibidos e permitidos e fundamentar a imputação de resultados nesta classificação, assim, somente riscos proibidos relevantes ensejariam reprovação penal através da teoria da imputação objetiva.

Ocorre que em ambientes inteligentes interativos nos quais são utilizadas tecnologias como internet das coisas e robôs se constituiriam verdadeiros sócio-eco-tecno sistemas vivos já que no emaranhado de dispositivos e objetos todas as coisas estariam vivas. Desse modo, estando tudo vivo e emaranhado, não seria possível atribuir um resultado causal a nenhum agente, exceto pelo fato de que podem existir bolhas de POS (personal operating space).

Dentro de um ambiente de computação onipresente, um usuário fará uso de muitos dispositivos que variam em funcionalidade. Esses dispositivos provavelmente estarão interconectados em torno de um espaço, como uma sala em um prédio inteligente ou um espaço público. Surge então a preocupação com o conceito de espaço operacional pessoal: uma entidade formada para interação entre o dispositivo móvel de um usuário e quaisquer dispositivos/serviços ambientais no espaço local. Assim, em um ambiente inteligente interativo existiriam bolhas de POS (personal operating space) nas quais os usuários com seus dispositivos móveis podem controlar e personalizar o ambiente.2

Considerando que sócio-eco-tecno sistemas vivos são hiper complexos, ambíguos e refletem particularidades que mesmo a teoria dos sistemas ou da complexidade não são capazes de descrever ou explicar faz-se necessário reconhecer a importância dos discursos particulares e da natureza situacional dos processos sociais.3 Subvertendo a própria ideia de sistema, neles somente existiriam situações específicas de interação construídas circunstancialmente em nichos de convivência. Então a bolha de POS (personal operating space) funcionaria como um nicho de convivência no qual se pode interpretar situações concretas de interação para determinar a responsabilidade penal.

Operando o “efeito bolha” no direito penal a imputa­ção de resultados se daria segundo alguns critérios: primeiro, determinar o espaço operacional pessoal, o nicho de interação onde o fato ocorreu; segundo, determinar o âm­bito de liberdade de ação do agente, a medida das suas possibilidades no espaço operacional pessoal e terceiro, determinar se agiu com responsabilidade, buscando se autopreservar e preservar a vida humana dentro do seu espaço operacional pessoal.

Vamos voltar para a beira do rio guiados pela melodia suave de Belle and Sebastian, segundo o efeito bolha no direito penal, em um ambiente inteligente interativo, quando se trata de uma ação, se o agente atuou dentro dos limites da bolha, isto é, se buscou seus interesses de acordo com as possibilidades estruturais existentes no seu nicho de interação, não há que se falar em responsabilidade penal pelo resultado emergente. Mas quando se trata de uma omissão tem de se considerar se o agente permitiu que o mal acontecesse buscando se autopreservar, ou seja, se a omissão visava preservar a vida humana na Terra, segundo o princípio responsabilidade e a heurística do medo de Hans Jonas.

1 Disponível em https://youtu.be/HL0-0F9BaHQ?si=8f_X-BdFOB-uzDT9.

2 Introducing Personal Operating Spaces for Ubiquitous Computing Environments artigo de Victor Callaghan, Anuroop Shahi e Michael Gardner na revista Pervasive Computing, 2005. 

3 Da abordagem de sistemas abertos à complexidade: algumas reflexões sobre seus limites para compreender processos de interação social artigo de Maria Ceci A. Misoczky na revista Cadernos EBAPE.BR, Rio de Janeiro, volume 01, número 01, 2003.

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